“Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,1-11).
Bem-aventurada Virgem Maria da Conceição Aparecida, Solenidade.
28º Domingo do Tempo Comum | Domingo | Ano C

No início do ministério público de Cristo, o evangelho de João nos apresenta um episódio singular e profundamente simbólico que ficou conhecido as bodas de Caná. Um casamento, um vinho que falta, e a discreta presença da Santíssima Virgem Maria que percebe o que os outros não veem. À primeira vista, parece apenas um gesto de compaixão, transformar água em vinho para que a festa continue. No entanto, nas entrelinhas, o evangelista nos revela algo infinitamente mais profundo, o primeiro sinal do Messias, a manifestação da glória de Deus na humanidade do Verbo encarnado.
Santo Agostinho, bispo e doutor da Igreja, comentando este evangelho, ensina que “aquele que fez o vinho amadurecer nas vinhas é o mesmo que o produziu nas talhas; não há diferença entre o milagre e o curso natural das coisas, senão no modo e na velocidade” (In Ioannis Evangelium Tractatus, VIII, 4). Com esta observação, o Doutor da Graça nos convida a perceber que em Cristo a natureza encontra sua plenitude, e o cotidiano é elevado à esfera do sagrado. As bodas de Caná não são um milagre isolado, mas a inauguração de um novo modo de Deus agir na história, Ele não suspende a criação, mas a eleva, a transfigura, a redime.
O contexto do casamento não é acidental, desde o Gênesis, a união entre homem e mulher é imagem do amor divino, figura da aliança eterna entre Deus e o seu povo. Ao escolher um matrimônio para realizar o primeiro de seus sinais, Cristo anuncia que a nova aliança, selada no seu Sangue, será um matrimônio espiritual entre Ele e a Igreja. São João Crisóstomo recorda que “ao comparecer às bodas, Cristo confirma a bondade do matrimônio e o dignifica com sua presença” (Homilia XXI sobre João). Ele, o Esposo verdadeiro, entra na história humana para restaurar o amor ferido pelo pecado.
E é justamente a Santa Mãe de Deus quem percebe a ausência do vinho. Ela, Mãe atenta e intercessora, não pede por si, mas pelo outro. O vinho, símbolo da alegria e da graça, falta, e é a Mãe que intercede junto ao Filho. Santo Tomás de Aquino, o doutor angélico, na Catena Aurea, comenta que a Virgem Maria, ao dizer “eles não têm mais vinho”, manifesta a compaixão perfeita e a intercessão perfeita, ela não impõe, não exige, apenas apresenta a necessidade. A resposta de Jesus, “Minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4b), não é uma recusa, mas uma revelação. Ele chama Maria de “Mulher”, não por distanciamento, mas porque nela se cumpre a profecia do Gênesis, é a Mulher cuja descendência esmagará a cabeça da serpente. A “hora” de Cristo, aquela da cruz, ainda não chegou, mas começa a ser anunciada. O vinho novo de Caná antecipa o vinho eucarístico do Calvário.
São Bernardo de Claraval, abade e doutor da Igreja, via nesse episódio a pedagogia divina da intercessão mariana. Ele escreve, “Deus quis que nada nos fosse concedido sem passar pelas mãos de Maria” (Homilia super Missus est). Assim, o primeiro milagre de Jesus é também o primeiro ato público da mediação materna de Maria. Ela não apenas crê, mas convida ao mesmo, “fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5b). Nessas palavras, a Mãe resume toda a espiritualidade cristã.
As seis talhas de pedra, destinadas às purificações judaicas, representam a antiga Lei, incapaz de saciar plenamente o coração humano. Santo Agostinho observa que o número seis, símbolo da imperfeição e da incompletude, aponta para a necessidade de algo novo, pleno, divino. Quando Cristo manda enchê-las até a borda, Ele não as rejeita, Ele as cumpre. A água da Lei se transforma no vinho da graça, o ritual externo dá lugar à transformação interior, a antiga aliança é transfigurada na nova e eterna.
O vinho melhor, guardado para o fim, é o sinal do Reino. São Gregório Magno, papa e doutor da Igreja, recorda que “Deus reserva o melhor para o fim, porque as delícias eternas são muito superiores às alegrias passageiras” (Homiliae in Evangelia, VI). O mordomo das bodas, sem compreender o milagre, admira o gesto, os servos, que encheram as talhas e serviram o vinho, sabem o que aconteceu. Eis o paradoxo da fé, os grandes não percebem o sinal, mas os humildes que obedecem o presenciam. A fé é sempre fruto da obediência humilde.
Santo Tomás de Aquino, vê neste episódio uma analogia entre a ordem natural e a sobrenatural. O intelecto humano, iluminado pela graça, é como a água transformada em vinho. Pela fé, o conhecimento humano é elevado e purificado, tornando-se apto a contemplar as realidades divinas. Assim como o vinho alegra o coração, a fé infundida pela graça dá ao intelecto e à vontade a alegria de participar da verdade divina.
O Papa Bento XVI, na Homilia em Caná da Galileia (2006), recordou que “Cristo não veio trazer uma alegria qualquer, mas a alegria plena, a do amor que se doa até o fim”. A transformação da água em vinho é o prenúncio da transformação mais profunda que Ele deseja realizar em cada um de nós, a conversão do coração. Em Caná, Cristo não apenas salva uma festa da vergonha da falta, mas inaugura o caminho da abundância da graça.
Para nós, discípulos de hoje, Caná é um convite a reconhecer as nossas faltas de vinho, as carências da fé, do amor, da esperança e a permitir que Maria interceda e que Cristo transforme o ordinário da nossa vida em lugar de manifestação da glória divina. O milagre não é apenas um evento do passado, mas uma realidade presente na sagrada liturgia, onde o mesmo Cristo continua a transformar o vinho em seu Sangue e a nossa vida em oferenda viva.
Em Caná, a glória de Deus se manifesta e os discípulos creem. E nós ao contemplarmos este mistério somos chamados a fazer o mesmo, crer que Ele ainda transforma, ainda renova, ainda salva. A água do nosso cotidiano pode se tornar o vinho do Reino, se fizermos tudo o que Ele nos disser.
Percebam Deus nos pequenos detalhes.
Graça, Paz e Misericórdia.




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