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Tendo refletido sobre as experiências originais da solidão e da união, passemos à terceira experiência original – a da nudez.
Após descrever sua união, a Bíblia conta que “o homem e a mulher estavam nus e não se envergonhavam” (Gn 2, 25). De todas as passagens nas histórias da criação, segundo o Papa, esta é “precisamente a chave” para compreender o plano original de Deus para a vida humana. Trata-se de uma afirmação corajosa. Em resumo, se não compreendemos o sentido de Gênesis 2, 25, não entendemos o sentido da nossa criação como homem e mulher; não compreendemos a nós mesmos e o sentido da vida.
Mas de que jeito podemos entender a nudez original se nós, tendo herdado as “folhas de figueira”, não temos dela uma experiência direta? Só podemos fazê-lo por comparação: olhando para nossa própria experiência de vergonha e “dando-lhe meia- volta”.
A mulher não sente necessidade de cobrir o corpo quando está sozinha no chuveiro. Se, porém, um estranho entra de surpresa, ela prontamente reage, tapando-se. Por quê? Segundo o Papa, aqui a “vergonha” é uma forma de autodefesa contra o perigo de ser tratada como simples objeto sexual. Ela tem consciência de que, desde sempre, nunca se disse que ela podia ser tratada como “coisa”, para o prazer de alguém. E por experiência também sabe que os homens (por causa da luxúria resultante do pecado original) tendem a ver o corpo da mulher como uma coisa. Por isto o cobre, não por julgá-lo “mau” ou “vergonhoso”, e sim para resguardar a própria dignidade ante os “olhares sensuais” de estranhos – olhares que não respeitam sua dignidade de pessoa, concedida por Deus.
Tome essa experiência de medo (vergonha) diante de outra pessoa e, “dando-lhe meia-volta”, chegamos à experiência da nudez de Adão e Eva sem sentirem a menor vergonha. A luxúria (desejo sexual para satisfação própria) ainda não tinha penetrado no coração humano. Daqui porque nossos primeiros pais não sentiram necessidade de autodefesa na presença do outro, simplesmente porque o outro não representava nenhuma ameaça à sua dignidade. Como se expressa poeticamente o Papa, eles “se olham e se conhecem ( … ) com toda paz do olhar interior” (02.01.1980). Esse “olhar interior” indica não apenas a presença de um corpo, e sim de um corpo que revela um mistério pessoal e espiritual. Eles viram o plano de amor de Deus (teologia) como que gravado em seus corpos nus, e isto era exatamente o que desejavam: amar como Deus ama, em e através de seus corpos. E não existe medo (vergonha) no amor. “O perfeito amor lança fora o temor” (1 Jo 4, 18).
Tal a razão por que a “nudez sem envergonhar-se” é a chave para entender o plano de Deus sobre nossas vidas – ela revela a verdade original do amor. Guarde bem este detalhe: Deus criou o desejo sexual “no princípio”, para que fosse o verdadeiro poder de amar como ele ama – em livre, sincera e total doação de si mesmo. Foi assim que o casal descrito no Gênesis o experimentou. O desejo sexual não era sentido como uma compulsão ou instinto de gratificação egoísta. A experiência da luxúria só vem com o alvorecer do pecado. É o resultado do que podemos chamar de “síndrome dos pneus furados”.
“Totalmente inflados” que estavam com o amor de Deus, o primeiro homem e a primeira mulher sentiam-se plenamente livres para transformar-se em doação mútua. Eram livres “com a liberdade própria da doação”, como destaca o Papa (16.01.1980). Somente uma pessoa livre da compulsão da luxúria é capaz de tornar-se um verdadeiro “dom” para o outro. A “liberdade da doação” é, portanto, a liberdade para abençoar, que significa estar livre da compulsão de agarrar e possuir. Foi esta liberdade que permitiu ao primeiro casal viver “nu sem a mais leve sombra de vergonha”.
Em consequência do pecado, a nossa experiência de sexo ficou terrivelmente distorcida. Em meio a essas distorções, podemos até pensar que deve realmente haver algo de errado com o sexo em si mesmo (a mentalidade “corpo-mau/sexo-sujo” parte daqui). As distorções, porém, não estão no âmago do sexo. No âmago do sexo descobrimos, isto sim, um sinal da própria bondade de Deus. “Deus contemplou sua obra e viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31).
Conforme João Paulo II, a nudez sem envergonhar-se mostra que o primeiro casal participou da mesma visão de Deus. Eles conheceram sua bondade. Conheceram o glorioso plano de amor traçado por Deus. Viram-no inscrito em seus corpos e o experimentaram na atracão mútua. Com o surgimento do pecado, porém, perdemos essa gloriosa visão. Mas não esqueça que “Jesus veio restaurar a criação na sua pureza original” (CIC n. 2336). Claro, isto só se completará no céu; no entanto, através da graça da redenção, podemos começar a reconquistar ainda nesta vida o que se perdeu.
Percebam Deus nos pequenos detalhes.
Graça, Paz e Misericórdia.
Fonte: WEST, C. Teologia do corpo para principiantes: uma introdução básica à revolução sexual por João Paulo II. Madrid: Myrian, 2008.