Sobre a missa das crianças

Written by

·

A algum tempo atrás, eu fui estagiário na cúria metropolitana da minha cidade natal, enquanto estudante de administração eu pude conhecer muita gente interessante e variados problemas de gestão que ocorriam nas paróquias da minha arquidiocese. Mas se há algo que eu sempre destaco dessa experiência foi a oportunidade de me aproximar do arcebispo local, não pelo prestígio que isso automaticamente gera dentro da Igreja, mas pela maneira singular como ele ensinou-me a ser um católico levemente melhor, sim, digo levemente, não que ele não tenha tentado mais, eu que não fui capaz de ir além do levemente. 

Em certa ocasião, eu morava em uma região que possuía uma igreja vinculada a outra paróquia que o arcebispo pretendia alçar a condição de nova paróquia. Esse processo, embora seja uma decisão pastoral específica, também possui uma série de decisões administrativas importantes, por isso, sabendo que eu residia na região, ele me convidou para fazer parte do processo e naquele momento apresentou-me um jovem seminarista que seria pastoralmente responsável por guiar o processo. 

O arcebispo não estava para brincadeira, estabeleceu conosco uma série de metas pastorais e administrativas para que a igreja fosse alçada a condição de paróquia. Aquilo para mim era uma oportunidade única, muitos padres passam a vida sem ter contato com um processo como esse e eu, um mero leigo, tinha sido colocado no olho daquele furacão. 

Para a minha surpresa, ele disse, “vocês vão decidir ao final do prazo se há condições de se elevar a paróquia, se vocês disserem não, está encerrado, se disserem sim, eu vou avaliar”

Aquelas palavras me deram um frio na espinha, eu não estava lisonjeado ou me sentindo importante por estar naquela sala ouvindo aquelas palavras, eu estava tonto de medo, eu não conseguir falar abertamente com ninguém sobre aquilo por quase um ano, era pressão demais para a minha pouca fé, mas como diz aquela famosa frase atribuída a Santa Inácio de Loyola, 

“Ore como se tudo dependesse de Deus. Trabalhe como se tudo dependesse de você”.

Foram longas semanas, que se tornaram longos meses, que se tornaram anos. O arcebispo cada vez mais cobrava e apertava a gente, o jovem seminarista já se tornara padre, a igreja já tinha pastoral e administrativamente quase tudo que uma paróquia deveria ter segundo os critérios que o arcebispo estabeleceu e ele frequentemente aparecia para corrigir quando saíamos da rota. 

O arcebispo era conhecido por ser um homem muito exigente, muito reto e muito sério, por vezes, impaciente em suas correções, mas nunca incoerente com elas. Naquele dia, onde ele me presenteou com umas das lições pastorais que mais guiam a minha catequese até os dias de hoje e pela qual estou fazendo esse relato, não foi diferente. 

Durante o processo, eu fui coordenador geral de catequese dessa igreja, Batismo, primeira Eucaristia, Crisma, Matrimônio, não importava se eram crianças, jovens ou adultos, direta ou indiretamente tudo que acontecia na igreja passava por mim primeiro, depois ia para o padre. Eu como bom administrador padronizada, criava fluxos, previa demandas, montava planos, delega responsabilidades, sabia qual missão se adequava melhor para explorar o potencial de alguém. Mas sempre há algo novo que podemos aprender.

Durante o novenário da padroeira o arcebispo compareceu para presidir a Santa Missa, estávamos receosos pois o nosso prazo estava perto do fim e reconhecíamos o que ainda nos faltava e sabíamos que ele vinha para acompanhar o processo. No dia, a igreja não estava cheia, era no meio da semana e boa parte dos fiéis estavam no trabalho, faculdade, na escola etc., podemos dizer que havia 50% da lotação da igreja. 

Ele muito sério na sacristia, quase não falou nada, durante a missa, estava muito sério, até o momento em que se levantou para fazer a homília, duas crianças correram pela nave da igreja subiram no presbitério e uma delas abraçou sua perna. A mãe e a catequista da criança foram apressadamente para retirá-la dali, já o arcebispo, afagou a cabeça da criança, lhe fez o sinal da cruz na testa e perguntou, “cadê a sua mãe?”. A criança apontou para a mulher que já estava a frente do presbitério com a cara no chão. 

“E essa outra quem é?” perguntou ele a criança apontando para a mulher ao lado da mãe, a criança respondeu “a tia da catequese”, ele sorriu, entregou a criança para a mãe, olhou rapidamente para o padre no presbitério, depois me encarou fixamente e começou a homília. 

Ele começou dizendo que não deveríamos esperar das crianças o mesmo comportamento dos adultos, enfatizou a importância de cobrar um comportamento firme de jovens crismados e de exigir responsabilidade de adultos, mas que em relação as crianças, as vezes, só nos cabe deixar vir a nós as criancinhas, seguindo o exemplo de Jesus. 

Depois observou a quantidade de crianças presentes e questionou por não ser a noite da missa das crianças e começou a questionar quem as trouxe, constatando que a maioria delas estavam ali com familiares, ele disse 

“Essa é a verdadeira missa das crianças, pode não ter sido pensada para as crianças, mas elas foram incluídas nela”.

Naquele momento ele não estava criticando a existência de uma missa específica para as crianças, estava exaltando o fato de as crianças estarem ali para viver juntas aquele momento, não apenas para ficarem estáticas como se crianças não fossem. Para ser sincero, eu nunca tinha visto ele tão agradável e tão visivelmente contente antes. 

Ao término da missa, na sacristia, ele voltou-se para nós e disse que estava em uma igreja viva, não por ter crianças, mas por ter famílias, não eram crianças deixadas na igreja para que seus país tivessem um tempo livre, não eram crianças arrastas a força para igreja por não ter onde deixá-las, eram pessoas de verdade vivendo a fé, crianças que reconheciam seus pais e até seus catequistas na missa. Catequistas que reconheciam seu papel de ensinar a fé, além do mero momento do encontro de catequese, eram pais que guardavam as portas, acolhiam e ajudavam os mais velhos.

Depois de uma conversa repleta de ponderações, conselhos e tapas necessários, saímos da sacristia e nos deparamos com o chão molhado no caminho para fora, o arcebispo olhou em volta procurando a origem da água e foi logo perguntando se aquilo era um vazamento, mas antes da resposta uma jovem saiu do banheiro lateral jogando mais um balde de água no chão, ela olhou para nós e ficou surpresa e sem graça, pedindo desculpas pois não sabia que ainda estávamos lá. O arcebispo foi gentil, a abençoou e agradeceu o serviço dela.

Saímos pela porta lateral, ele entrou no carro e sorriu para nós dizendo que queria um relatório financeiro na próxima terça-feira, para saber o quanto faltava para ele anunciar a nova paróquia. Ficamos sem resposta e eu só conseguir responder “sim, senhor”, ele percebeu e sorriu dizendo, que eu ainda era jovem, mas que para ele, aquela foi uma missa das crianças muito boa e que se o Deus não quisesse uma paróquia ali, ele não atrairia jovens para lavar chão e banheiro aquela hora da noite. Terminou dizendo “os sinais de Deus são sutis, tem coisas que só o Espírito Santo nos leva a fazer”.

Ele foi embora e naquela noite o padre e eu aprendemos, entre muitas coisas, o que é uma boa missa das crianças. 

E você, já pensou sobre isso? O que você pode fazer para que a sua paróquia tenha uma boa missa das crianças? 

Percebam Deus nos pequenos (e sutis) detalhes.

Graça, Paz e Misericórdia.